Posições: liberdade para além de determinações

(por Wanda Marx)

 

Diante da pergunta quem sou eu, não tenho resposta, pois não há uma definição, eu estou em processo. Este modo de me ver para além de determinações me proporciona um espaço de imensa liberdade, pronta para o novo, para o inesperado. Priorizo desenvolver as minhas habilidades, me inclino ao que me desperta curiosidade. Fui estilista por alguns anos, por amor ao design e à costura, não pela moda, no entanto sempre fui fascinada por filosofia, daí resolvi prestar o vestibular na área. Depois que me formei em filosofia na USP uma série de questões surgiram, minha alma me convidou a compartilhar o meu conhecimento, daí comecei a dar palestras de filosofia, assim fui me afastando da moda em direção ao campo de desenvolvimento humano e resolvi militar pela educação, hoje, entre outras atividades,dou aula em uma escola pública localizada em uma área de vulnerabilidade social.
Não foi uma trajetória fácil afirmar as minhas decisões e sustentar as minhas escolhas, principalmente por ser mulher, já que ser protagonista da própria é algo muito recente na história feminina. Quando em aula digo aos meus alunos que as mulheres não tinham direito a coisas corriqueiras como estudar ou votar e que ainda hoje existe um número imenso de mulheres no mundo excluídas dessa participação, todos ficam chocados.
Seria impossível generalizar as experiências das mulheres de modo coeso por conta de todas as diferenças históricas, culturais e sociais que organizam seus papeis em diversas partes do mundo, mas ouso a afirmar que todas são feministas, mesmo as que desconhecem o termo e até as que se dizem contra o movimento. E digo isso por um motivo óbvio: qual mulher é partidária de atos de violência moral ou física em relação ao seu próprio ser? Ou ainda com a perda de sua dignidade? Eu garanto que nenhuma. O que varia é a percepção de cada mulher quanto ao que entende por violência em sentido amplo e estrito, bem como o esclarecimento histórico sobre a condição das mulheres e o legado diretos conquistados pela luta feminina que hoje de tão difundidos e praticados se tornaram naturalizados aos olhos de muitas de nós. Mas eu duvido que alguma mulher queira abrir mão dos direitos conquistados por nossas antecessoras. Pode haver discordância quanto às pautas, a conduta ou a postura de algumas vertentes feministas, mas a história da luta feminina é muito mais abrangente do que isso.
Eu, por exemplo, quando era mais nova, não sabia o que era o feminino, o movimento não era difundido como hoje, contudo, com passar do tempo, descobri que a minha conduta, o modo como eu me colocava socialmente e as minhas posições correspondiam ao comportamento tido como masculino. Em contrapartida, a minha figura sempre foi extremamente feminina, pois eu sempre me senti bastante atraída por essa estética. Em minha percepção não havia nenhuma dissonância entre a minha expressão e a minha aparência, isto sequer era uma questão para mim, entretanto para sociedade havia, sempre ouvi aqui e ali, principalmente os homens, dizerem que eu era esquisita – e isso não tinha relação com a minha aparência, eu não entendia o porquê da minha esquisitice se meu comportamento era tão semelhante ao deles, porque dizer coisas cruas, desconcertantes, sarcásticas, como eles fazem constantemente era algo chocante. O que era diferente? Diferente em relação a quê? O que é diferente só pode ser diferente a medida que de diferencia de uma referência padrão. E por qual motivo a minha liberdade de ser deveria estar subordinada a algum padrão?
Com passar do tempo compreendi que eu era uma promessa falsa, em uma linguagem clássica a minha aparência não correspondia à minha essência, esse deslocamento causava constrangimento, ou seja, a sociedade me cobrava uma estereotipia, era como se a minha figura prometesse algo que não estava ali, eu era uma fraude. Eu nunca havia me dado conta disso e do sofrimento que a sociedade me impunha por conta dessa contradição que viam em mim. Mas a verdade é que não há contradição alguma, eu me expresso de acordo com a minha vontade, a intolerância com o diferente está nos outros, o julgamento malicioso com quem escapa ao padrão vem dos outros, eu estaria em contradição se eu me subjugasse a determinado estereótipo para corresponder às expectativas de algum nicho dando ouvidos a coisas do tipo: “se você quer ser reconhecida por sua competência e inteligência deveria ser menos vaidosa, assim você parece fútil e frívola” ou “você deveria ser mais doce e menos assertiva, quando se argumenta de igual para igual em uma conversa de homens eles se sentem confrontados” – ambos exemplos deixam transparecer expectativas sociais de normas de conduta de representação feminina, como se esses aspectos da minha personalidade fossem auto excludentes e eu tivesse que optar por um deles.
Foi um processo compreender tudo isso e como o papel social do homem e da mulher encontra-se difundido dissimuladamente de modo sutil nas menores coisas. E não estou aqui responsabilizando nem os homens, nem as mulheres ou a sociedade como um todo, pois essas expectativas estão tão enraizadas que muitas vezes não são percebidas nem por quem as pratica. Há urgência na desconstrução das representações femininas.
Devemos experimentar as nossas experiências em conformidade com o que pulsa de modo sincero em nós e mudarmos de opinião de acordo coma as nossas próprias demandas, sem nos sentirmos pressionadas ou oprimidas por julgamentos externos. Eu também desenvolvi um trabalho artístico que envolve a poesia como expressão, o curioso é que quase sempre se espera de uma mulher poesias românticas ou com temáticas ligadas à questão feminina, isso porque implicitamente o lugar de reflexão sobre as grandes questões da humanidade sempre foi ocupado pela fala dos homens. As discussões ligadas à liberdade sempre foram protagonizadas por homens, este tema sempre esteve ligado ao ideal masculino do direito de agir de acordo com a própria vontade, segundo o seu arbítrio, já a mulher historicamente sempre esteve privada do horizonte dessa temática por encontrar-se subjugada à determinações externas estruturais de toda ordem. Entretanto, este tema me fascina tanto quanto a um homem, pois a minha fala não tem gênero.

Musa clandestina
Liberdade clandestina
seu modo de ser
Corruptora
musa subversiva

Não pode mostrar-se
no clarão do dia
Libidinosa
é escandalosa, imoral

Liberdade normativa
calma e passiva
Descarnada
não mais que um pastiche

Ornamento ordinário
do humano banal
Frustrado
mal morto pela moral

Liberdade lírica
enlevo dos poetas
Êxtase
inspiração febril

Venha musa!
nua – em carne viva –
lasciva
transgredir à luz do dia.
Poiesis

 

fotos: Camila Caggiano